A conexão entre o povo preto é ancestral e atemporal. É anterior à luta do advogado Luiz Gama (Flavio Bauraqui), da ativista Angela Davis (Naruna Costa), da cientista social Luiza Bairros (Valdineia Soriano) e Neilton Matos Pinto, pai do jovem João Pedro, assassinado em São Gonçalo, mas os caminhos trilhados por eles no combate ao racismo e por liberdade e justiça são relevantes demais e estarão no especial ‘Falas Negras’. Ao lado de outros 18 depoimentos de pessoas pretas, seus discursos vêm para provocar uma reflexão sobre o tema no Dia da Consciência Negra. Os atores Silvio Guindane, Flavio Bauraqui, Naruna Costa e Valdineia Soriano falam nas entrevistas abaixo sobre a trajetória de seus personagens, que estarão no programa idealizado e organizado por Manuela Dias e dirigido por Lázaro Ramos.
Silvio Guindane interpreta Neilton Matos Pinto – Pai do adolescente João Pedro Matos Pinto, assassinado na favela do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro.
Como foi gravar como Neilton, pai do João Pedro?
Foi uma responsabilidade grande. Enquanto estamos conversando aqui, um outro João Pedro pode estar sendo assassinado agora. O projeto “Falas negras” é de grande importância para a televisão e para nosso público, fazer parte disso é uma honra gigantesca. A tragédia na vida de Neilton é algo muito recente e viva na cabeça dos brasileiros, sua fala é contundente, coerente e muito emocionante. Lázaro me dirigiu de uma forma muito sensível me deixando mergulhar nesse personagem. Sem dúvida foi um momento que nunca mais vou esquecer. Sou preto, de origem pobre e sou pai, eu poderia ser o Neilton e João Pedro poderia ser meu filho, ser intérprete da fala dele mexeu muito comigo.
Como foi gravar em tempos de pandemia?
Estamos nos adaptando bem aos protocolos de segurança. A TV Globo tem um cuidado muito rigoroso para que todos ali no set de gravação estejam protegidos. Voltar a gravar é sempre uma alegria. A única coisa que senti falta foi não poder abraçar meus colegas ao final da gravação.
Flavio Bauraqui vive Luiz Gama – Importante líder abolicionista, jornalista e poeta brasileiro, nasceu em Salvador e viveu entre 1830 e 1882. Filho de um descendente de portugueses com uma escravizada liberta, a revolucionária Luiza Mahin, foi vendido pelo próprio pai, depois que sua mãe foi exilada por motivos políticos. Autodidata, se tornou um dos advogados abolicionistas mais atuantes do país, responsável pela libertação de centenas de negros mantidos no cativeiro.
Como foi interpretar Luiz Gama?
Para um artista uma das coisas mais lindas que pode haver é essa conexão com as raízes, com as pessoas que antecederam a nossa história. E foi assim o meu encontro com Luiz Gama, esse homem tão transgressor, que passou uma vida inteira ouvindo “não” e ele transformou o não em sim. E o sim que ele comungou com as outras pessoas libertou tantos escravos. Ele é uma persona tão potente sobretudo na História negra, mas também uma peça muito importante na nossa História.
Qual o maior mérito desse especial?
Ele tem uma particularidade que vai além desse resgate, ele é um incentivo para que outras pessoas produzam e percebam a importância de olhar para nós mesmos, ter esse olhar que você faz para o seu passado, para sua ancestralidade. E acho que muitas pessoas vão ficar surpresas com a quantidade de benfeitores negros que o nosso mundo tem.
Naruna Costa interpreta Angela Davis – Filósofa e ativista, nasceu em 1944 nos Estados Unidos. Ainda adolescente ela organizou grupos de estudo inter-raciais, que acabaram perseguidos e proibidos pela polícia. Foi perseguida por sua associação com o partido comunista americano e com os Panteras Negras, condenada e presa sem provas. Depois da prisão, Angela se tornou uma influente professora de história e passou a militar contra o sistema carcerário norte-americano.
Como foi interpretar Angela Davis?
Foi muito saboroso, pois Angela Davis é uma referência para mim e, certamente, para muitas mulheres negras de gerações diferentes, mundo afora. É muita responsabilidade assumir as palavras dessa filósofa que é uma liderança tão importante na luta contra o racismo, o machismo e as desigualdades sociais, ao mesmo tempo que é um presente poder fazer isso enquanto ela está viva, contribuindo para que as pessoas que ainda não a conhecem, se inspirem em sua trajetória, e nos temas que ela traz, que são tão caros para nós, no Brasil, como o encarceramento, a falta de direitos e o extermínio da população negra.
O que significa 20 novembro para você?
É um feriado superimportante no Brasil que, ao meu ver, é muito deficiente no reconhecimento do racismo estrutural, que ainda precisa de um dia especifico dedicado à reflexão sobre a discriminação racial e, mais que isso, a história e a cultura da população negra brasileira, suas lideranças e lutas. Dia 20 é o dia em que é lembrada a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, reverenciar a população quilomba, reconhecer os valores e direitos é um dever do Brasil. No entanto, racismo tem todo dia, e a luta contra ele se não for diária e prioritária, nenhum dia 20 de novembro dará conta.
Valdineia Soriano interpreta Luiza Bairros – Administradora e cientista Social, nasceu em Porto Alegre, viveu entre 1953 e 2016. Foi um dos nomes mais atuantes do Movimento Negro Unificado (MNU), a principal organização da comunidade negra do país na segunda metade do século XX, também ficou marcada por sua trajetória política. Foi secretária de Promoção da Igualdade Racial da Bahia entre 2007 e 2011 e ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil, entre 2011 e 2014.
Como foi dar vida a Luiza Bairros?
Interpretar a grandiosa Luiza Bairros foi muita responsabilidade. Eu a conheci, vivi momentos lindos em sua companhia, aprendi muito com a sua fala, com sua responsabilidade e afinco em lutar por equidade racial sendo mulher negra, num espaço não pensado para o corpo negro, e sempre com muita elegância e inteligência. Se eu disser que não me emocionei, estarei mentindo. Interpretar Luiza também foi tê-la mais pertinho. Foi sentir a sua força, seu legado.
E como espera que o especial seja recebido pelo público?
Eu gostaria que o público gostasse tanto quanto eu gostei de fazer. É um especial que traz à cena personalidades que a história quis apagar, e que merecem ser conhecidas e bem lembradas. Eu espero que as famílias pretas e não pretas, mas as pretas principalmente, possam entender ainda mais que os nossos passos vêm de longe, que tentaram apagar, mas que nossas vozes negras, nossos corpos negros estão aqui para contar, narrar, interpretar, mergulhar em nossas próprias histórias. O que a literatura, a música, as artes plásticas, o cinema, a TV e até a história tentou apagar, o 20 de novembro obriga visibilizar. E que fique evidenciado que somos negras e negros o tempo todo, 365 dias do ano. Contudo, que o especial possa entrar nas casas e acariciar a população negra com as histórias que serão contadas.
Idealizado e organizado por Manuela Dias, ‘Falas Negras’ é dirigido por Lázaro Ramos, conta com Thaís Fragozo na pesquisa e Aline Maia como consultora e pesquisadora. Integram o elenco do especial Fabricio Boliveira, Babu Santana, Guilherme Silva, Ivy Souza, Naruna Costa, Taís Araujo, Heloisa Jorge, Barbara Reis, Mariana Nunes, Izak Dahora, Silvio Guindane, Olivia Araujo, Reinaldo Junior, Aline Deluna, Flavio Bauraqui, Bukassa, Ângelo Flávio, Samuel Melo, Ailton Graça, Tulanih Pereira, Valdineia Soriano e Tatiana Tibúrcio.