Aos 55 anos, o ator estrangeiro Roberto Birindelli não imaginava que iria emendar um trabalho no outro no Brasil, após sair do Uruguai praticamente sem recursos, junto com sua família, por causa do golpe militar que acometeu o país na década de 70, quando tinha apenas 15 anos. “O que é férias?”.
1) Quando você chegou ao Brasil, teve alguma dificuldade com cultura, idioma e gastronomia?
— Em 1978, mudei com minha família de Montevidéu para Porto Alegre. O golpe militar foi muito duro, não se vislumbrava muito caminho a seguir. Vim com meus pais e Porto Alegre não era a primeira escolha, mas acabou sendo muito acolhedora. Choque cultural, língua (eu não falava quase nada de português), valores e idiossincrasias. No Uruguai, há toda uma reverência à terceira idade, tradições e conhecimento, que não é valorizada no Brasil. Fui criado também por japoneses. Minha avó alugava quartos para diplomatas da Embaixada Japonesa e foi um baita aprendizado. Os primeiros anos foram meio isolados, trabalhando, tentando um mínimo sustento. Faculdade de arquitetura, grupos de música, poesia (cheguei a editar livro independente com poemas meus), mímica e dança. O teatro veio depois. Bem mais tarde, fiz a Faculdade de Artes Cênicas, cinema, lecionei e, mais recentemente, a TV. Em 2009, mudei pro Rio. Choque cultural maior ainda. Porto Alegre é mais próxima em valores, modo de vida e relações interpessoais a Montevidéu do que ao Rio de Janeiro. Quanto à gastronomia, aos poucos fui trocando as carnes, massas e queijos (que são muito melhores e mais presentes na culinária do Rio da Prata) por frutas, alimentação mais saudável e açaí.
2) Na série “1 Contra Todos”, você interpreta um traficante boliviano e, por causa da sua origem uruguaia, o espanhol falado por ele não é um problema. Você teve alguma preparação para diferenciar o dialeto/sotaque dos dois países?
— O trabalho de composição de Pepe foi dos mais gratificantes, desde a caracterização, até as descobertas que o processo de trabalho maravilhoso (com Breno Silveira) permitem. O sotaque representa os países andinos, bem diferente do espanhol do Uruguai e da Argentina. Foi trabalhoso e teve ainda outro cuidado: como a série passa no Brasil e em vários países de fala hispânica, em cada frase buscávamos evitar falsos cognatos e escolhíamos expressões que pudessem ser entendidas tanto em espanhol, quanto em português. Por isso, substituímos também muitas palavras por gestos. Uma trabalheira, mas muito gratificante. Nesta terceira temporada, vamos ver como um ser humano normal, médico oftalmologista, que ajudava os pobres em sua vila, se transformou no psicopata chefe do cartel.
3) Na novela bíblica “Apocalipse”, você interpreta um delegado, que, apesar da pose de durão, é um homem honesto e justo. Só que ele não liga para religião e não é arrebatado por Deus. Por quê?
— Guido é baseado em muitas observações pessoais e de outros trabalhos. Já vi muitos delegados em ação, em séries e filmes que fiz, como “A Teia” e “Polícia Federal – A Lei É Para Todos”. Claro que, nestas produções, eu estava do outro lado das algemas. Uma das referências para a novela é a série “The Leftovers”, sobre como a sociedade se organiza após o desaparecimento de 2% da população. E esta série tem um núcleo policial bem importante. Após o arrebatamento, Guido, como policial e delegado, se vê em uma situação complicada: muitos desaparecidos, situação fora de controle e muito poucas explicações viáveis. A polícia investiga a partir de suposições, experiências anteriores, intuições e conjecturas. Mas, só pode agir em cima de fatos e provas, que é como a lei vigente vai amparar as decisões tomadas pela polícia. Guido pode acreditar como ser humano no que quiser, na finitude do ser, no universo holístico, no pensamento mítico-mágico ou religioso, mas, só pode agir como delegado a partir de princípios técnicos e científicos. Mesmo que o Anjo Gabriel mande uma pessoa vingar as injustiças e matar hereges, esta pessoa – sob o ponto de vista da polícia – deverá ser presa.
4) Qual é sua ligação com a fé?
— “Já não sonho, hoje faço, com meu braço, meu viver” – Milton Nascimento. Meu terapeuta sempre me dizia que eu não tenho fé. Em minha casa, sempre coexistiram várias religiões: judaísmo, catolicismo, kardecismo e mais recentemente budismo. Mas, realmente, eu não funciono com crenças. Meu foco é mais com exemplos e aprendizados. Se eu não sei transformar água em vinho, esta informação não me diz muito. Mas, se posso aprender com a experiência de filósofos, Buda, Osho, Cristo e suas experiências, beleza.
5) Atualmente, você está trabalhando no filme “Loop”. Você pode contar um pouco sobre seu personagem delegado e sua diferença para o Guido de “Apocalipse”?
—É um delegado que sofreu a violência na pele. Ele vinga um assassinato de um ser querido (mais do que isso é spoiler) e se identifica muito com quem está investigando, pois é um sujeito que também teve perdas. Já Guido é um profissional de carreira.
6) O que vem por aí com “Humanpersons”, “O Olho e a Faca”, “Os Irmãos Freitas”, “Tequila”, “Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos” e “The Last Defectors”?
—“Humanpersons” trata do tráfico de órgãos, desumanização, organizações criminosas dentro e fora das esferas do governo. João, meu personagem na trama, é um brasileiro que vem do garimpo e se estabeleceu no tráfico em Medellín. É quem faz a conexão Brasil – Colômbia – Estados Unidos. “O Olho e a Faca” é uma parceria com Rodrigo Lombardi e Paulo Sacramento. Dois amigos petroleiros, até que um acidente na plataforma transforma essa amizade. “Os Irmãos Freitas”, fazia tempo queria trabalhar com Aly Muritiba. Narra a carreira de Popó e seu irmão, da Bahia aos Estados Unidos. “Tequila”, é um longa feito à oito mãos, direção de Juan Zapata, com quem já atuei em “Simone”. Dois homeless passam uma noite nas ruas de Los Angeles, atrás de uma garrafa de tequila. E, nesse caminho, desvendam o dia-a-dia na maior capital homeless do mundo. Em “Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos”, um pizzaiolo cego (Edson Celulari) e seu dia-a-dia, seu mundo em equilíbrio. Até que a possível cirurgia que devolve sua visão altera este esquilíbrio. Em “The Last Defectors”, há uma sociedade futurista, onde grupos e forças lutam pelo futuro do planeta.
7) Nos últimos anos, seus personagens tiveram alguma ligação com corrupção, polícia e tráfico, o que também é o caso de “A Vida Secreta dos Casais”. Tem algum perfil de personagem que gostaria de interpretar? O que vem por aí?
—Verdade, é uma temática muito em evidência hoje no Brasil. Se bem que fiz tantos personagens diferentes. Prometo que, depois de Los Angeles, tiro umas férias. Mentira, já tenho dois convites para filmes. Este ano, rodo a quarta temporada de “1 Contra Todos” e a segunda temporada de “A Vida Secreta dos Casais”. Ano que vem, rodo “Escadinha”, em processo de captação. E estamos desenvolvendo uma série, “Keep Talking”.